terça-feira, 18 de maio de 2010

Eu estava lá!

Pilatos, Caifás e Judas — a quem os evangelistas apõem culpa maior pela crucificação de Jesus, e seus associados: os sacerdotes, o povo e os soldados. Acerca de cada pessoa ou grupo usa-se o mesmo verbo: paradidomi, traduzido por "entregar" ou "trair". Jesus havia predito que seria entregue nas mãos dos homens, ou "entregue para ser crucificado". E os evangelistas, ao contarem sua história, demonstram que a predição de Jesus foi verdadeira. Primeiro, Judas o entregou aos sacerdotes (por causa da ganância). A seguir, os sacerdotes o entregaram a Pilatos (por causa da inveja). Então Pilatos o entregou aos soldados (por causa da covardia), e eles o crucificaram.

Nossa reação instintiva a esse mal acumulado é dar eco à pergunta espantada de Pilatos, quando a multidão gritou pedindo o sangue de Jesus: "Que mal fez ele?" (Mateus 27:23). Pilatos, porém, não recebeu uma resposta lógica. A multidão histérica clamava cada vez mais alto: "Crucifica-o! Crucifica-o!" Mas por quê?


É natural encontrarmos desculpas para eles, pois vemos a nós mes¬mos neles e gostaríamos de ser capazes de nos desculparmos. Deveras, havia algumas circunstâncias mitigantes. Como o próprio Jesus disse ao orar pelo perdão dos soldados que o estavam crucificando: "pois não sabem o que fazem". Da mesma forma, Pedro disse a uma multidão de judeus em Jerusalém: "Eu sei que o fizestes por ignorância, como também as vossas autoridades." Paulo acrescentou que, se "os poderosos deste século" tivessem compreendido, "jamais te¬riam crucificado o Senhor da glória."

Contudo, sabiam o suficiente para ser culpados, aceitar o fato de sua culpa e ser condenados por suas ações. Não estavam eles reivindicando responsabilidade total quando clamaram: "Caia sobre nós o seu sangue, e sobre nossos filhos"? Pedro falou com toda a franqueza no dia de Pentecoste: "Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo." Além do mais, longe de discordar do seu veredicto, o coração dos ouvintes de Pedro se compungiu e perguntaram o que deviam fazer (Atos 2:36,37). Estêvão foi ainda mais direto em seu discurso ao Sinédrio, o qual o levou ao martírio. Chamou o Concilio de "homens de dura cerviz e incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo, assim como o fizeram vossos pais também vós o fazeis." Pois seus pais haviam perseguido os profetas e matado aqueles que predisseram a vinda do Messias, e agora tinham traído e assassinado o próprio Messias (Atos 7:51-52). Paulo, mais tarde, usou linguagem parecida ao escrever aos tessalonicenses acerca da oposição judaica do seu tempo ao evangelho: eles "mataram o Senhor Jesus e os profetas, como também nos perseguiram". Por estarem tentando conservar os gentios afastados da salvação, o juízo viria sobre eles (1 Tessalonicenses 2:14-16).

Culpar o povo judeu pela crucificação de Jesus hoje é extremamente fora de moda. Deveras, se a crucificação for usada como uma desculpa para matá-los e persegui-los (como aconteceu no passado), ou para propagar o anti-semitismo, é absolutamente indefensável. O modo de evitar o preconceito anti-semítico, contudo, não é fingir que os judeus são inocentes, mas, tendo admitido a sua culpa, acrescentar que outros partilharam dela. É assim que os apóstolos viram a situação. Herodes e Pilatos, gentios e judeus, disseram eles, tinham juntos "conspirado" contra Jesus (Atos 4:27). Mais importante ainda, nós mesmos também somos culpados. Se estivéssemos no lugar deles, teríamos feito exatamente o que fizeram. Deveras, nós o fizemos. Pois sempre que nos desviamos de Cristo, estamos "crucificando" para nós mesmos o Filho de Deus, e o "expondo à ignomínia" (Hebreus 6:6). Nós também sacrificamos Jesus à nossa ganância como Judas, à nossa inveja como os sacerdotes, à nossa ambição como Pilatos. "Estavas lá quando crucificaram o meu Senhor?" pergunta o cântico espiritual. E devemos responder: "Sim, eu estava lá." Não apenas como espectadores, mas também como participantes, participantes culpa¬dos, tramando, traindo, pechinchando e entregando-o para ser crucificado. Como Pilatos, podemos tentar tirar de nossas mãos a responsabilidade por meio da água. Mas nossa tentativa será tão fútil quanto foi a dele. Pois há sangue em nossas mãos. Antes que possamos começar a ver a cruz como algo feito para nós (que nos leva à fé e à adoração), temos de vê-la como algo feito por nós (que nos leva ao arrependimento). Deveras, "somente o homem que está preparado para aceitar sua parcela de culpa da cruz", escreve Canon Peter Green, "pode reivindicar parte na sua graça".23

A resposta que até agora demos à pergunta: "Por que Cristo morreu"? procurou refletir o modo pelo qual os escritores do evangelho contam a sua história. Eles indicam a corrente de responsabilidade (de Judas aos sacerdotes, dos sacerdotes a Pilatos, de Pilatos aos soldados), e, pelo menos, sugerem que a ganância, a inveja e o temor, os quais instigaram o comportamento dos envolvidos, também instigam o nosso. Contudo, esse não é o relato final dos evangelistas. Omiti uma evidência vital que eles apresentam. É esta: embora Jesus tivesse sido levado à morte pelos pecados humanos, ele não morreu como mártir. Pelo contrário, ele foi à cruz espontaneamente, até mesmo deliberadamente. Desde o começo do seu ministério público, ele se consagrou a esse destino.

No seu batismo, ele se identificou com os pecadores (como mais tarde o faria por completo sobre a cruz), e em sua tentação ele se recusou a desviar-se do caminho da cruz. Ele predisse muitas vezes os seus sofrimentos e morte, como vimos no capítulo anterior, e, decididamente, partiu para Jerusalém a fim de morrer aí. O uso cons¬tante que ele faz da palavra "deve" em relação à sua morte expressa não uma compulsão exterior, mas sua resolução interior de cumprir o que a seu respeito havia sido escrito. "O Bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas", disse ele. Então, deixando de lado a metáfora, "eu dou a minha vida. . . Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou" (João 10:11, 17,18).

Além disso, quando os apóstolos resolveram escrever acerca da natureza voluntária da morte de Jesus, usaram várias vezes o mesmo verbo (paradidomi) o qual os evangelistas empregaram com relação ao ser ele entregue à morte por outros. Assim, Paulo pôde escrever que o "Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou (paradontos) por mim".24 A afirmação do apóstolo talvez tenha sido um eco de Isaías 53:12, que diz que ele "derramou (pareáothe) a sua alma na morte". Paulo também usou o mesmo verbo ao olhar para a auto-entrega voluntária do Filho à entrega do Pai. Por exemplo, "aquele que não poupou ao seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou (paredoken), porventura não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?" Octavius Winslow resumiu o assunto com uma bela afirmativa: "Quem entregou Jesus para morrer? Não foi Judas, por dinheiro; não foi Pilatos, por temor; não foram os judeus, por inveja — mas o Pai, por amor!"

É essencial que conservemos juntos estes dois modos complementares de olhar para a cruz. No nível humano, Judas o entregou aos sacerdotes, os quais o entregaram a Pilatos, que o entregou aos soldados, os quais o crucificaram. Mas, no nível divino, o Pai o entregou, e ele se entregou a si mesmo para morrer por nós. A medida que encaramos a cruz, pois, podemos dizer a nós mesmos: "Eu o matei, meus pecados o enviaram à cruz"; e: "ele se matou, seu amor o levou à cruz". O apóstolo Pedro uniu as duas verdades em sua admirável afirmativa do dia de Pentecoste: "Sendo este entregue pelo deter¬minado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mão de iníquos." Assim, Pedro atribuiu a morte de Jesus simultaneamente ao plano de Deus e à maldade dos homens. Pois a cruz, que é uma exposição da maldade humana, como temos considerado em particular neste capítulo, é ao mesmo tempo a revelação do propósito divino de vencer a maldade humana assim exposta.

Voltoà pergunta com a qual o comecei: por que Jesus Cristo morreu? Minha primeira resposta foi que ele não morreu; ele foi morto. Agora, porém, devo equilibrar essa resposta com o seu oposto. Ele não foi morto, ele morreu, entregando-se voluntariamente para fazer a vontade do Pai.

A fim de discernir o que era a vontade do Pai, temos de examinar novamente os mesmos eventos, desta vez olhando abaixo da superfície.
Jonh Stot

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